“Capitães da Areia”: apontamentos de uma Leitura Crítica

“Capitães da Areia”: apontamentos de uma Leitura Crítica[1]
Ângela Pinheiro[2]
1. Introdução
Foi uma releitura após mais de 35 anos. Havia lido ainda adolescente. Do texto, praticamente nada recordava, a não ser a lembrança marcante de um livro revelador das difíceis condições de vida de crianças e adolescentes, seus personagens centrais.
Muito recentemente, a leitura de “Capitães da Areia” foi recomendada por uma integrante do NUCEPEC/UFC[3]. Decidi-me a fazê-la. Foi uma experiência singular. Agora, partilho com vocês este artigo, ao concluir a leitura de “Capitães da Areia” e me perguntar: o que ficou em mim do seu conteúdo? Difícil de decidir a abordagem: são inúmeras as dimensões que podem servir consistentemente de “mote”.

2. O Contexto
De toda maneira, parece-me essencial, de início, contextualizar o momento da escrita do livro.
Jorge Amado elaborou todo o texto há mais de 70 anos, no decorrer de 1937, ano do início da Ditadura Vargas. Denominada também de Estado Novo, prolongou-se até 1945, durante o qual se verificaram evidentes restrições de liberdades individuais e coletivas no País; houve a outorga da Constituição Federal de 1937; concretizam-se perseguições políticas e restrição de direitos. Tudo isso em um ambiente de populismo trabalhista e de orquestração da propaganda oficial para exaltar a figura do ditador Getúlio Vargas, que chegou a ser denominado de Pai dos Trabalhadores.
O enredo de “Capitães de Areia” aborda, mesmo que secundariamente, o ambiente político de então, ao incluir em sua trama os movimentos grevistas de trabalhadores das docas da Bahia. João de Adão, líder dos doqueiros, e Loiro, morto durante manifestações grevistas e pai de Pedro Bala, um dos Capitães, são personagens que encarnam a luta dos trabalhadores.
Em termos de legislação específica, referente à criança e ao adolescente, vigorava, quando da escrita de “Capitães da Areia”, o Código de Menores de 1927[4], o primeiro do País, também reconhecido como Código Mello Matos, Juiz de Menores e principal mentor desse diploma legal. A Doutrina da Situação Irregular faz-se incontestavelmente presente em seu conteúdo, entrelaçando na configuração do menor, as significações do abandono, da carência (econômica, sobretudo) e da delinqüência, como o Código denominava o conflito com a lei.

3. O interesse pelo livro
Desde que me entendo, Jorge Amado tem sido apontado como um dos autores brasileiros mais lidos no País e, também, um dos mais traduzidos de nossa literatura, ampliando, de conseqüência, o alcance de suas obras para incontáveis países. Além disso, alguns de seus livros foram adaptados como telenovelas (“Gabriela, Cravo e Canela”), e para o cinema (“Dona Flor e Seus Dois Maridos”). Romancista de extensa obra, os temas abordados por Jorge Amado voltam-se muito para o cotidiano. Um olhar que, sem dúvida, revela modos de pensar, agir e sentir da população brasileira, particularmente dos segmentos mais pobres.
A difusão em larga escala da obra de Jorge Amado e a sua abordagem do cotidiano levaram-me a acatar a sugestão de integrante do NUCEPEC e reler “Capitães da Areia”, para uma análise, por considerar que os seus conteúdos, ao revelarem dimensões do cotidiano brasileiro, também são constitutivos de realidades. Contribui, assim, para a construção de significados sociais de personagens e eventos que constituem as tramas de seus enredos.
No caso da obra em análise, “Capitães da Areia”, ao conter a configuração complexa de uma cultura juvenil, contribui para a construção (ou a consolidação) de significações sociais referentes à criança e ao adolescente, no pensamento social brasileiro.
Mergulhar em seu conteúdo poderá contribuir, portanto, para uma compreensão mais ampliada dos significados que têm sido atribuídos às crianças e aos adolescentes ao longo da história social brasileira.
A propósito, guia-me a convicção de que expressões artísticas, tal qual o romance “Capitães da Areia”, fazem-se instrumentos difusão de representações sociais[5], ao consolidarem (ou não) conteúdos circulantes de um determinado contexto, de um momento histórico. Guia-me, assim, a vontade de ampliar a compreensão de significações das infâncias no Brasil, ao adentrar no pensamento de autores, como Jorge Amado, que falaram dessa temática, no campo da literatura[6], e também no campo da observação do cotidiano social.
Assim, desperta-me interesse construir uma análise crítica de “Capitães da Areia”, por considerar que o seu conteúdo traz um complexo exemplo de uma encarnação histórica do Menor. Aqui tomada como uma representação social síntese, formalizada na Doutrina da Situação Irregular, a representação social Menor, como construída em “Capitães da Areia”, traz em si, de forma extremamente instigante, o entrelaçado das dimensões do abandono, da carência e do conflito com a lei, articuladas perversa e consistentemente.

4. O Enredo
Certamente, para a compreensão dos leitores deste artigo, parece-me necessário resenhar o conteúdo de “Capitães da Areia”.
Enredo ficcional, baseado na realidade ou relato de realidade. Pouco importa. Ou importa menos do que constatar como a história dos “Capitães da Areia” revela essa representação social Menor, uma significação (ainda) profundamente recorrente em nosso tecido social, sobre a infância pobre, com todas as implicações decorrentes na configuração do trato público dispensado a crianças e adolescentes das classes subalternas no País.
No início do século XX, mais precisamente a partir da década de 1910, cerca de 100 crianças e adolescentes (sobre)vivem entre as ruas e os areais da Bahia, e habitam um velho trapiche abandonado. Há uma única referência à data, a década de 1910. Abandonados à própria sorte – assim são apresentados os Capitães pelo autor, não fora a presença de alguns(poucos) adultos: Padre José Pedro, Mãe-de-Santo Don’Aninha, o capoeirista Querido-de-Deus, o doqueiro João de Adão, o proprietário de um carrossel, Nhozinho França. No mais das vezes, as relações dos Capitães com instituições sociais lhes são desfavoráveis: a truculência policial, os maus-tratos no Reformatório e no Orfanato, o tratamento excludente a eles dispensado por integrantes outros da Igreja Católica e do Juizado de Menores[7].
Alguns desses 100 Capitães da Areia têm seus nomes (na verdade, quase sempre são os seus apelidos que constam) apontados: Pedro Bala, Pirulito, Gato, Boa
Vida,
Sem Pernas, Barandão, Professor, João Grande, Volta Seca…
Meninos-homens, é assim que o autor os denomina e os configura, sobretudo, como amantes da liberdade e diferenciados de “outras crianças”, para quem uma outra significação é delineada, como é bem revelador o trecho que se segue, que corresponde ao pensamento de Pedro Bala:
Bem sabia que eles nunca tinham parecido crianças. Desde pequenos, na arriscada vida da rua, os Capitães da Areia eram como homens, eram iguais a homens. Toda a diferença estava no tamanho. No mais eram iguais: amavam e derrubavam negras no areal desde cedo, furtavam para viver como os ladrões da cidade. Quando eram presos apanhavam surras como os homens. Por vezes assaltavam de armas na mão como os mais temidos bandidos da Bahia. Não tinham também conversas de meninos, conversavam como homens. Quando outras crianças só se preocupavam com brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens, na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças (grifo meu) (p. 235-6).
A busca dos Capitães da Areia por (sobre)viver parece representar o núcleo do enredo, e o que dá a liga à história. Seu desenrolar vai revelando nuances incontáveis de sentimentos, dimensões inúmeras de relacionamentos, relações dos personagens com instituições sociais as mais diversas, sonhos e destinos dos Capitães.
Valores e incontáveis situações sociais fazem-se presentes no enredo de “Capitães da Areia”, dos quais destaco tão somente alguns: furtos como meio de vida; sonhos; angústia; cinismo e dissimulação; sexo e desejo; hierarquia do grupo, com claro reconhecimento, respeito e confiança no chefe; recorrente falta do cuidado e carinho de mãe; estereótipos de gênero (p. ex. João Grande chora como uma mulher… (p. 217); briga entre gangues; mentiras.
Destaco, outrossim, como o grupo “Capitães da Areia” apresenta uma gama de leis internas, “porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana” (p. 189), leis que “nunca tinham sido escritas mas existiam na consciência de cada um deles” (p. 111) e às quais não admitiam descumprimento, tais como: fazer aquilo que haviam garantido (no caso, a Don’Aninha); “quando se é amigo, se serve ao amigo” (p. 94); não furtar de um companheiro (p. 185).
O texto é pródigo em abordagens de emoções e sentimentos: circulam, articulam-se, embatem-se manifestações de vingança, fraternidade, ódio, ternura, amor, solidão, cuidado, desprezo, coragem, busca pela liberdade, bondade, inveja, alegria, vergonha, medo, temor, pavor, respeito aos mais velhos, perdão, saudade, culpa, orgulho, valentia, compaixão, humilhação, alegria, admiração.
Na tessitura das emoções e sentimentos, um personagem chamou-me particularmente a atenção. Falo de Dora, a única menina a permanecer no trapiche. A constituição dessa personagem é profundamente densa, com múltipla significação, posto que Dora desperta, para diferentes Capitães, os mais diversificados sentimentos, a partir de relações concretas ou imaginárias, que eles estabelecem com ela: Dora Irmã, Dora Mãe Ideal, Companheira de Aventuras, Objeto de Desejo e de Pecado, Noiva, Esposa…
Há espaço, na história dos Capitães, para o que estou denominando de passagens poéticas, das quais são exemplo:
Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia “ (p. 66).
“O sol deixava cair sobre as ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher” (p. 106).
São inúmeras as situações apresentadas na história que ficam certamente como um inventário do que não deveria ser feito, em termos do trato público dispensado a crianças e adolescentes. Atenho-me a dois exemplos (outros poderão ser identificados pelos leitores): as agressões físicas (inclusive com o uso de chicote…) que são impingidas, por investigador policial e pelo Diretor de Reformatório (destinado a crianças e adolescentes do sexo masculino), durante depoimento prestado por Pedro Bala, chefe dos Capitães. Como segunda situação ilustrativa, cito o incentivo de um bedel do Reformatório à delação entre os internos: Fausto (o Bedel) anima a delação (p. 207); … ouve (Pedro Bala) os gritos denunciadores do delator (p. 209).
5. Perspectivas e Destinos dos Capitães
Que “rumos” tomam os Capitães? Como prosseguem em suas vidas? Morte de alguns (por doença ou pela ação de perseguição policial); carreira bem sucedida como artista plástico; engajamento em movimentos reivindicatórios de trabalhadores; retorno às origens sertanejas e inserção no grupo de Lampião; despertar de vocação sacerdotal e opção pela vida religiosa. Os exemplos se fazem incentivo à curiosidade do leitor e da leitora, para a compreensão do que possa significar, para crianças e adolescentes, construir (ou não) um projeto de vida. Para a grande maioria dos integrantes do grupo dos Capitães, segue desconhecido o desdobrar de sua vida, como o foram anônimos os personagens, ao longo do livro.
Dentre os personagens que têm explicitados os seus projetos de vida, está Boa Vida, que, pretendendo permanecer na Bahia, onde, quando crescesse, seria tão fácil viver uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal. Era a existência que deseja ter quando se fizesse completamente homem (p. 82).

6. E Fica-me…
…de resto, a ternura do autor pelos “Capitães da Areia”, sentimento que identifiquei tão profundamente ao longo de todo o texto. Fica-me, outrossim, o ressoar das gargalhadas dos Capitães, presentes no decorrer de sua história, apesar de tantos pesares e de tantas intempéries.

7. Referências Bibliográficas
MOSCOVICI, S. (1978) A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
PINHEIRO, A. de A. A. (2001). A Criança e o Adolescente como Sujeitos de Direitos: Emergência e Consolidação de uma Representação Social no Brasil. In: CASTRO, L. R. de. (org.) Crianças e Jovens na Construção da Cultura. Rio de Janeiro: NAU Editora/FAPERJ, 47-68.
___________________ (2006). Criança e Adolescente no Brasil: Porque o Abismo entre a Lei e a Realidade. Fortaleza: Edições UFC.
THERRIEN, A. T. S. (1998) Trabalho Docente: Uma Incursão ao Imaginário Social Brasileiro. São Paulo: EDUC.

________________________________________
[1]O texto lido foi da seguinte publicação do livro: AMADO, J. (1937-2009 C
apitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras.
[2]Professora da UFC, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC) e associada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA-Ceará).
[3]Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança, projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará, que atua desde 1984, na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
[4]Lembro que até o início do século XX, o termo “menor” era utilizado no Brasil, no plano jurídico, para fazer referência a quem não atingira a maioridade. É com a formulação dessa legislação específica para os menores de idade, Código de Menores de 1927, que a denominação menor é institucionalizada, consagrando-se como uma classificação com forte teor discriminatório. Ver a respeito: PINHEIRO, A. Criança e Adolescente no Brasil: Porque o Abismo entre a Lei e a Realidade. Fortaleza: Edições UFC, 2006.
[5]Em estudos anteriores (Pinheiro, 2001: 49; Pinheiro, 2006: 35), tenho explicitado a minha compreensão de representações sociais, com base no que preceitua Serge Moscovici (1978), como uma modalidade de conhecimento, que expressam uma parcela da realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a. Representações sociais são conteúdos de pensamento que traduzem a realidade e são por ela traduzidos. Têm, portanto, função constitutiva da realidade (Ângela Therrien, 1998:33), na qual a maioria das pessoas se movimenta. “Toda representação é composta de figuras e expressões socializadas”, é o que afirma, ainda, Moscovici (1978: 25), o que me permite considerar a importância das trocas sociais, inclusive através do conteúdo de obras literárias, para a construção de representações sociais.
[6]Ver o artigo de minha autoria, “Negrinha, qual é o teu nome?”, sobre o conto homônimo de Monteiro Lobato, que foi publicado no jornal O POVO, em 16.01.2010, p. 2 (Jornal do Leitor).
[7]Há uma referência diferenciada, neste sentido, com relação a um Juiz de Menores da Aracaju, Olivio Mendonça, “um homem bom, procurava resolver os conflitos como melhor podia, se abismava com a inteligência das crianças iguais a homens, compreendia que era impossível resolver o problema. Contava aos romancistas coisas dos meninos, no fundo amava os meninos. Mas se sentia aflito porque não podia resolver o problema deles…”(p. 237)
 

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