Conferência debateu as diversas formas violência na sociedade contemporânea e seus impactos na vida de crianças e adolescentes

A criação de um novo perigoso, extermínio de meninos e rapazes, comércio de armas e a importância da articulação das redes que atuam na defesa dos direitos humanos foram alguns dos pontos abordados na conferência

No intuito de problematizar a violência sob uma perspectiva de direitos humanos, o Cedeca Ceará realizou, no dia 17 de novembro de 2010, na sua sede, a Conferência “Cultura de violência e direitos humanos de crianças e adolescentes: desafios e perspectivas na sociedade contemporânea”. A discussão foi facilitada por Renato Roseno (advogado e militante social) e prof. Leonardo Sá (Laboratório de Estudos da Violência).

A abertura do evento iniciou às 18h30min, com a fala de Margarida Marques, da coordenação colegiada do Cedeca Ceará, colocando fatos de violência da história recente no nosso país e convidando os e as presentes a refletirem esses acontecimentos dentro de um contexto mais amplo, de como a violência é tratada na nossa sociedade e de como ela reflete a estigmatização à qual determinados segmentos da sociedade estão submetidos.

Leonardo Sá introduziu o debate endossando a centralidade que a estimatização tem no debate sobre a violência, colocando que a violência física é sempre uma violência que vem a reboque de processos anteriores de estigmatização: “Não há como pensar a violência física sem pensar formas de estigmatização. É interessante pensar hoje a formação de ‘pessoas indesejáveis’. E quando isso diz respeito a crianças e adolescentes, esse processo de estigmatização tem conseqüências muito mais graves e também duradouras”, afirma.

Nesta perspectiva, Leonardo aborda os mecanismos de como se dão essas violências, colocando que ela mais intensiva quanto maior é o processo de desqualificação simbólica da possível vítima e coloca a importância de se discutir isso, uma vez que “há todo um campo preventivo que pode atuar desde a produção do discurso pra minimizar o impacto dessa violência sobre potenciais vítimas”. O sociólogo também faz uma ponderação sobre o tema do debate, alertando para o cuidado que se deve ter com o uso do termo cultura de violência, uma vez que há apropriações conservadoras dele.

Num segundo momento da conferência, Leonardo propõe uma reflexão sobre a prática de extermínio de meninos e rapazes, afirmando que “temos um circuito de práticas de extermínio operando não apenas na nossa cidade, Fortaleza, e por que não no Ceará? – e temos que compreender esse processo, com qualificação pública da discussão dessas práticas de extermínio”. E denuncia como os discursos da mídia e da polícia encobrem todo um esquema por trás dessa realidade. “Quando a gente está em campo, fazendo pesquisa, a gente vê que existem modalidades diferentes de extermínio – e que esse discurso [o discurso de que as causas das mortes dos meninos e rapazes estão sempre relacionadas ao tráfico de drogas] encobre mais do que revela. E o que encobre? Em primeiro lugar, a comercialização de armas nas periferias pelos próprios policiais. Isso é uma renda adicional, que envolve também comerciantes locais. Trocando em miúdos: se um comerciante tem 15 mil reais, ele coloca na venda de armas porque a rentabilidade é maior do que nas aplicações financeiras. A arma é um meio de capital, ela não pode ficar parada: arma parada é capital empatado. E a maneira de dar rentabilidade é pelos assaltos”.

Leonardo Sá finaliza sua fala destacando a necessidade de se reproduzir o ponto de vista das crianças, de que as pesquisas pudessem ter o ponto de vista delas, para não ficarem focadas numa visão adultocêntrica, e aponta a importância da construção de microrredes, de potencializarmos as nossas experiências de aprendizagem como redes.

Dando prosseguimento à discussão, Renato Roseno coloca que categorias como infância e juventude são construções históricas e que é necessário desvelar o que perpassa a construção desses conceitos. Ele destaca um retrocesso no processo de afirmação e conquista de direitos humanos de crianças e adolescentes na última decada, colocando que “está agora acontecendo um processo de crítica ao que se instituiu como direitos de crianças e adolescentes”. “É muito importante pensar que o aconteceu, na década de 1990, na nossa sociedade, foi um retrocesso. Se a sociedade demandava direitos constitucionalizados na década de 1980, na década seguinte o que há é a desconstrução do que se construiu na anterior”. E aponta que esse processo está gerando a produção de um novo perigoso: “hoje vivemos um processo de desfiliação, de não reconhecimento. Se o reconhecimento foi a superação da invisibilidade, o processo atual é de destituição desse sujeito, é a produção de um novo perigoso”.

Ele acrescenta outros processos que contribuem para destituição de direitos de crianças e adolescentes: “o suicídio, por exemplo, que tem crescido assustadoramente e sobre o qual não se fala. O aumento de laudos que legitimam sistemas de controle sobre esses sujeitos – a utilização em larga escala de químicos em adolescentes [cumprindo medida de privação de liberdade]”. “Há um clamor pelo encarceramento de adolescentes e jovens. Há um enquadramento desse novo perigoso das periferias urbanas e que passa a ser “etiquetável”, sobretudo depois de entrar no sistema de aprisionamento”.

Outra questão apontada por Renato como problemática é a visão das crianças e adolescentes como meros objetos de consumo: “Se, por um lado, a adolescência e a infância são destituídos dos seus direitos, por outro lado há uma outra captura: a do mercado. Boa parte do mercado de publicidade brasileiro é dirigido a crianças e adolescentes. Se temos um processo de destituição de direitos, há esse outro, também perverso, dirigido a crianças e adolescentes que existem enquanto consomem”.

Roseno prossegue fazendo uma crítica ao sistema capitalista, apontando-o como produtor de processo de dissociação, no qual os detentores de direitos não se enxergam como tal “Por conta do trabalho no Cedeca, estive em unidades socioeducativas, aqui e em outros locais, e com adolescentes vítimas de exploração sexual. E havia uma expressão igual e dita da mesma forma em diferentes estados: ‘pra mim não tem mais jeito’. Uma vida desprovida de desejo de viver. Quando se ouve isso de alguém que tem 16 anos de idade isso é mais um exemplo desse sistema produtor de dissociações. O capitalismo produz isso: processos de dissociação. Isso chega a um adolescente demandante de direitos que se coloca como
um nada”.

Finalizando o debate, Renato aponta outro segmento do mercado, dentro dessa sociedade capitalista, que alimenta e se alimenta da violência: a chamada indústria do medo, enfocando não só seu papel na manutenção e no aumento da violência, como também o lugar que assume na desarticulação das lutas sociais. “Há mais de um milhão de trabalhadores da segurança privada. Isso é um aparato maior do que o dos espaços institucionais. Há um mercado muito bem engendrado. O mercado do medo – e, se há um mercado do medo, tem que ter um sujeito perigoso. Agora tem um outro elemento: uma sociedade com medo não produz emancipação. Como vamos ter sujeitos em luta se eles estão dominados pelo medo?

Como alternativa para enfrentamento dessa realidade, Renato Roseno afirma que é necessário tornar os direitos de crianças e adolescentes relevantes e repolitizar a infância e a adolescência, junto com outras categorias, como a de gênero, de raça etc.

O relato completo da conferência pode ser visualizado no sítio do Cedeca Ceará (http://www.cedecaceara.org.br/documentos/495 ).
 

Aline Baima
Assessora de comunicação
Cedeca Ceará
Jornalista Mtb 1702 JP CE

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