A militarização das escolas e a ofensa à Constituição Federal

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Por Márcio Alan Menezes

Este artigo foi publicado originalmente no blog Escrivaninha

Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro para a Presidência da República em 2018 uma de suas propostas para a educação foi a instituição do programa Escola Cívico-Militar que repassa a gestão escolar para instituições militares. O programa funciona a partir da adesão de municípios e estados, e, para além da gestão escolar burocrática, interfere diretamente na rotina pedagógica do ambiente escolar. Não há necessariamente uma inovação em termos da presença de militares na educação.

A Lei 9786/99 (BRASIL, 1999) já prevê o ensino no Exército Brasileiro. A Portaria nº 042, de 6 de Fevereiro de 2008, do Comando do Exército, regulamenta os colégios militares (BRASIL,2008). Tal legislação indica a possibilidade de um regime educativo de natureza disciplinar, compatível com a instituição militar, além da formação de recursos humanos para a instituição militar.

Juntamente com esse modelo acima identificado, de aplicação às Forças Armadas, coexiste no Brasil o de escolas militares organizados pelos estados, com legislação própria e com fundamento na competência para legislar sobre educação, já que a União é responsável por diretrizes gerais da educação, e os estados podem atuar na temática de forma concorrente, com base no artigo 24, IX da Constituição Federal de 1988.

A alteração desse panorama surge com o Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019 que institui o programa escola cívico-militar, o que consiste em uma ofensiva do Governo Federal na temática. Ao permitir o conveniamento de redes estaduais e municipais ao programa, a União amplia de forma significativa a possibilidade de ampliação da experiência de militarização da educação.

A conceituação do que é uma escola cívico-militar é bastante simples, pois são “escolas públicas regulares estaduais, municipais ou distritais, que aderirem ao Pecim” (BRASIL, 2019).

O modelo jurídico de colaboração entre a União, através do Ministério da Educação e Estados e Municípios prevê: apoio técnico e financeiro; gestão de processos educacionais; gestão de processos didáticos-pedagógicos; gestão de processos administrativos.

Uma análise detalhada dos princípios (art. 3ºdo Decreto) indica que o Programa se volta à adoção de uma determinada gestão escolar nos aspectos didáticos e administrativos, tipicamente militares. Quanto aos objetivos presentes no art. 4º do Decreto, percebemos que surgem questões complexas do ambiente escolar e comunitário como de responsabilidade do Programa, tais como redução da violência na escola; aumento do pertencimento escolar, etc.

É importante destacar que as competências da União (art. 6º), através do Ministério da Educação e da Defesa, incluem, dentre outras, definir o perfil dos militares que irão atuar no Programa; a metodologia de avaliação, dentre outros. Além do Ministério da Educação, o Ministério da Defesa tem competências definidas no Decreto.

Das várias incongruências do Programa, destaca-se a contratação de militares inativos das Forças Armadas para atuar no Programa, e a possibilidade de atuação de servidores efetivos das polícias militares e corpo de bombeiros. Do ponto de vista do Direito Administrativo é plenamente possível identificar um desvio de função, com atuação de servidores militares fora das suas competências constitucionais relacionadas à área de segurança pública.

O art. 8º do Decreto prevê como competência das Forças Armadas “contratar militares inativos como prestadores de tarefa por tempo certo que atuarão nas Ecim”.  É possível aprofundar tal discussão acerca se a contratação de inativos como prestadores de tarefa por tempo certo não configura uma violação à regra da cumulação lícita de cargos públicos.

Com o lançamento do Programa e as primeiras adesões, diversas denúncias surgiram principalmente relacionadas à liberdade de expressão; padronização de comportamentos discentes, com proibição de gírias, definição de aspectos estéticos como corte de cabelos. Proibição de afetos e namoro, cobrança de taxa de fardamento, etc.

É possível identificar alguns problemas após a implantação do programa, como a diminuição da liberdade de pensamento e pluralismo de ideias; a submissão de civis à disciplina militar; a questão da liberdade sindical, dentre outros problemas. As denúncias, diversas por abuso de autoridade, já se acumulam e são noticiadas por veículos de comunicação.

No Ceará, os municípios de Sobral e Maracanaú aderiram ao programa, além de relatos de escolas privadas de inspiração militar. Interessante perceber que muitos familiares indicam que acreditam no modelo por considerar que reduzirá a violência nas comunidades.

Observamos que, pelas notícias veiculadas acerca da implantação das escolas cívico-militares, são estabelecidas diversas regras para os estudantes, tais como: proibição de gírias; proibição de paquera ou namoro (Contato físico “que denote envolvimento de cunho amoroso” é proibido); proibição de uso de batons ou esmaltes de unha; obrigação de bater continência e caminhar marchando; proibição de mascar chicletes; obrigação de corte de cabelo padronizado; proibição de qualquer crítica, considerando falta disciplinar grave “denegrir o nome da polícia ou de qualquer de seus membros.

A escola deve cumprir o Princípio da Gestão Democrática, resultando em um ambiente que preza a participação nas definições do Projeto Político Pedagógico, tal participação alcança trabalhadores, gestores, estudantes e familiares. Portanto, as definições do que é admitida ou não na prática escolar deve ser definido de forma plural, e pela própria comunidade escolar.

Os princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino podem sofrer sério risco, já que o ambiente voltado ao controle demonstra não ser o mais propício para o desenvolvimento de uma prática educacional com pluralismo de ideias  É fácil imaginar situações em que os conflitos oriundos da cultura e práticas dos adolescentes e da obediência a um determinado código militar irão gerar.

A cobrança de taxas nas escolas militarizadas, noticiadas em Goiás no valor de R$ 70,00 (setenta reais) além de despesas com fardamento ofende, frontalmente, o princípio da gratuidade do ensino, já definido de que o acesso à educação, até para adequação ao inciso I do art. 206 (igualdade de condições para o acesso e permanência na escola) deve ser garantido de forma não onerosa.

O princípio da qualidade da educação também é violado. Não podemos admitir qualidade sem democracia. A qualidade deve ser construída democraticamente. Existe concretamente uma disputa de concepções pedagógicas que influem na concepção de qualidade da educação. Para além dos insumos indispensáveis à prática pedagógica, a dimensão da qualidade dialoga com a pluralidade de ideias, pensamento, arte e saber. É inconcebível uma educação de qualidade em um ambiente que não existe liberdade de expressão e de práticas pedagógicas.

O princípio da valorização dos profissionais é ameaçado, já que os profissionais da educação ficam vinculados ao regime militar estabelecido, atingindo de forma central a liberdade de associação e expressão desses professores.

A estrutura do Programa Escola Cívico Militar e as denúncias que surgem evidenciam que a sua prática é relacionada a uma “padronização” do comportamento discente; arbitrariedade no trato da disciplina com estudantes; cobrança de fardamento; restrição à liberdade de expressão de professores e sindicatos. Além disso, existe um desvio de função na incorporação de militares na gestão escolar.

À guisa de conclusão, a proposta do Programa, sob argumento de melhoria da qualidade na educação, não avança em nenhum ponto decisivo para tanto, como a valorização dos profissionais; fornecimento de insumos adequados, bibliotecas, material didático, etc. Foca no aspecto de uma gestão centralizada e com rígida disciplina.

O que está por trás é a consolidação de uma estratégia de sedimentação de uma intervenção nas escolas com a introdução de práticas militares, na contramão do acúmulo construído no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), com a passagem de escolas civis para as Polícias Militares e demais forças de segurança pública.

É uma clara ofensa aos princípios da educação nacional, como relata Catarina de Almeida, são negados os princípios de:

1. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, considerando que na escola militarizada permanecem apenas os que se adaptam ao novo modelo (ou ame ou deixe) e os demais são transferidos, quando não se pratica o lema do pede pra sair, prática aplicada à alunos e professores;

2. Liberdade de aprender, ensinar, quando os estudantes são submetidos não só às normas rígidas e hierárquicas, mas também obrigados a seguir não preceitos humanos universais e sim do militarismo;

3. Gestão democrática do ensino público, quando substitui as relações horizontais pela hierarquia e obediência, próprias do meio militar;

4. A gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, quando se institui o caixa escolar e se passa a cobrar taxas de matrículas, “contribuições voluntárias” mensais e uniformes (nada baratos!) para diferentes ocasiões e;

5. Consideração com a diversidade étnico-racial, quando impõem a uniformização de vestimentas, cortes de cabelo, comportamentos e imposição da cultura militar, provocando a homogeneização e negação dos sujeitos.

Portanto, uma silenciosa intervenção de militarização está em curso, cabendo aos educadores verdadeiramente democráticos debater, conversar e reivindicar o cumprimento dos princípios constitucionais da educação, sem exceção, para, ao final, podermos construir um projeto de educação de qualidade.

Márcio Alan Menezes Moreira é advogado, mestre em Direito pela UFC, atua com direito administrativo e direito à educação. É membro da diretoria do CEDECA Ceará

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