MANIFESTAÇÃO AO PROCESSO N° 10883272/2021
SOBRE PROPOSTA DE RESOLUÇÃO DO TELETRABALHO NA DPE-CEARÁ
Os movimentos sociais e entidades da sociedade civil que atuam na defesa de direitos e no acesso amplo e isonômico à justiça, inclusive durante a pandemia de COVID-19, vem, por meio desta nota, se manifestar sobre proposta de alteração substancial no atendimento da Defensoria Pública do Estado do Ceará. Com base nessa atuação, manifestamo-nos acerca da proposta de resolução que “dispõe sobre o teletrabalho no âmbito da Defensoria Pública do Estado do Ceará e dá outras providências”, nos termos que se seguem:
1) O conselho superior da Defensoria Pública-Geral do Estado do Ceará considera o “avanço tecnológico” no processo de implantação do trabalho remoto ou à distância a partir de meios digitais. Todavia, não se pode tratar desse processo sem considerar os fatores de desigualdade sociais e, consequentemente, de desigualdade de acesso presentes no contexto da maioria das pessoas que necessitam do atendimento da Defensoria Pública Estadual, de modo que o acesso à internet, aos recursos/equipamentos e as expertises de utilização não são regra geral. Os movimentos e entidades, no acolhimento de demandas de pessoas em busca por acesso à Justiça , durante o período da pandemia, recebeu inúmeras reclamações envolvendo a dificuldade de acesso ou por não disponibilizar de internet, ou por não disponibilizar de dispositivo próprio ou por não saber como proceder para obter o atendimento online.
2) Considera-se “as vantagens e benefícios diretos e indiretos do teletrabalho para a Administração, para o servidor e para a sociedade”. Porém, como foram constatadas as vantagens e benefícios do teletrabalho para a sociedade? Realizou-se pesquisa com a população atendida pela DPE? Se sim, os resultados obtidos podem ser demonstrados de forma transparente? A avaliação geral observada é de pessoas que procuraram os serviços é a de insatisfação com o atendimento virtual, de modo que, na maioria das vezes foi necessário à Frente acionar a Ouvidoria Geral Externa desta instituição para conseguir encaminhar casos de emergência que não obtiveram êxito ao buscar o teletrabalho.
3) Sobre o Art. 1º, primeiro parágrafo, destaca-se a necessidade de se definir “autonomia funcional” e sua relação com a função legalmente constituída. Afinal, há um regramento para o entendimento de autonomia funcional?
4) Sobre o Art. 2º é necessário que se questione todos os seus termos, dialogando assim com os diversos itens colocados como objetivos do atendimento e reuniões por meios virtuais.
I – melhoria dos indicadores de produtividade – Existe algum estudo que forneceu esses indicadores de produtividade? Como foi aferido, quais as fontes de verificação? Qual método foi empregado para aferir os indicadores de produtividade. Ademais, o que aponta para uma melhoria dos mesmos?
II – promoção da economicidade dos recursos – Ora, qual o objetivo do setor público senão o de prestar atendimento de alguma forma à população? Sendo assim, a economicidade do serviço se dará em termos da diminuição da oferta do serviço, haja vista que uma parcela significativa da população não tem acesso à internet e/ou às linguagens das novas tecnologias. Dessa forma, a economicidade se dará em termos de privação do direito de muitos, o que não aparenta razoabilidade.
III – a maior abrangência e alcance aos serviços prestados pela Defensoria Pública à população – O que indica que o atendimento virtual resulta em maior alcance? Quais as leituras estão sendo produzidas sobre essa realidade de virtualização dos atendimentos?
V – a facilitação do acesso à justiça e aos serviços prestados pela Defensoria Pública – Como um atendimento virtual pode ser considerado mais fácil do que um atendimento presencial? Considera-se aqui a situação da população em situação de rua? As inúmeras famílias que convivem com a fome cotidianamente? A população rural, indígena e quilombola?
VIII – a promoção e estímulo da adoção de práticas socioambientais sustentáveis, com a diminuição de poluentes e a redução no consumo de água, esgoto, energia elétrica, papel e de outros bens e serviços disponibilizados nos órgãos da Defensoria Pública do Estado do Ceará – O serviço público em geral dispõe de ferramentas para aferir gastos e reduzi-los, mantendo o seu funcionamento com acesso ao público.
IX – a melhoria da mobilidade urbana e a redução dos gastos com deslocamentos – Estando o serviço em pleno funcionamento, o tempo de deslocamento e até o custo com a passagem são questões sanáveis com a intervenção do sistema municipal de assistência social. Mas a Defensoria pode, por exemplo, atuar para garantir a gratuidade nos transportes coletivos, para evitar o aumento das tarifas dos transportes municipais e intermunicipais e até atuar para a garantia dos fortalecimento da malha viária e de pleno fornecimento à população.
X – a redução de filas e tempo de espera – tal questão está posta no plano de ampliação da Defensoria e não na diminuição da oferta do serviço à população.
XII – promover a cultura orientada a resultados, com foco no incremento da eficiência e da efetividade dos serviços prestados à sociedade – De acordo com Hely Lopes Meirelles (2009) a eficiência é um dever da administração, definida como aquilo que se impõe aos agentes públicos na realização de suas atribuições para que seja efetuada com maior presteza e rendimento do labor. Ele acrescenta que o referido princípio é o mais moderno, e foi incluído na medida em que houve a necessidade de ir além da legalidade para melhorar o desempenho, de modo a se exigir melhores resultados em favor do serviço público para atendimento das demandas da sociedade, nada mais além de que o dever de boa administração.Considere-se que é tarefa primeira da Defensoria Pública o atendimento ao assistido pobre na forma da lei, portanto aquele que por sua condição de vulnerabilidade, não dispõe de condição necessária à sua defesa. Dito isso pode-se afirmar que essas condições são materiais, porém outras barreiras se impõem, dentre elas o analfabetismo, a linguagem digital, os usos de equipamentos, e, sobretudo, o diálogo franco com quem poderá acolher a sua demanda para além da análise da imagética ou por meio de textos. Não feriria a um princípio da administração o seu emprego na contramão do acesso dos vulneráveis digitais? Como ser eficiente em atender o povo pobre se o mesmo não dispõe de meios para garantir o seu atendimento.
5) No Art. 4º, parágrafo único, escreve-se: “Em todas as hipóteses será assegurado ao vulnerável digital a oportunidade de atendimento presencial que poderá ocorrer a partir de agendamento”. Aqui o “vulnerável digital” é tratado como uma exceção, mas enquanto sociedade civil organizada é nitidamente compreensível que a maioria das pessoas que precisam da Defensoria Pública é de “vulneráveis digitais”, sendo, pelo contrário, exceção as pessoas que têm plenas condições de recorrer ao teletrabalho. Pesquisa do Comitê Gestor da Internet do Brasil revela que, em 2020, usuários das classes D e E com internet em casa são 64%. Ainda que no período da pandemia os dados de acesso tenham aumentado, a desigualdade permanece, pois 90% dos usuários das classes D e E se conectam à rede exclusivamente pelo celular. A outra questão que se coloca é com relação a proposta de agendamento: como ocorreria tal agendamento? Seria feito por meio digital? Se sim, a proposta é contraditória já que se trata de uma alternativa para pessoas com dificuldades de acesso. Em complemento, no Art. 5º, propõe-se que uma estrutura para atender os “vulneráveis digitais” presencialmente que comparecerem ao núcleo fixo que deseja acessar. Mas, no parágrafo 1º do referido artigo, coloca-se que, nessa ocasião, é possível que não haja um atendimento individual e que apenas seja agendado para data futura, o que requer custos de deslocamento e demora. Sendo aprovada essa proposta, é possível que a maior parte das pessoas, que como dito são “vulneráveis digitais” optem pela modalidade presencial, mas sem a presença dos defensores nos órgãos de atuação, deslocando-se para um atendimento que pode não acontecer.
6) Ainda sobre o problemático Art. 5º, no parágrafo 2º, são propostos os convênios com outros órgãos públicos como CAPS, CRAS, CUCAS, associações, entre outros, para oferecer internet e recursos para o atendimento remoto. Entretanto, é preciso considerar que esses órgãos em si já têm seus problemas estruturais e que em muitos territórios não suprem as necessidades da população. Como terceirizar um serviço para equipamentos de políticas públicas que já são escassos dentro dos territórios dos “vulneráveis digitais”? Além disso, avalia-se que, sendo aprovada a proposta de ampliação do teletrabalho, haverá um distanciamento cada vez maior entre a Defensoria Pública e a natureza de seu papel na sociedade, uma vez que ela nasce para a garantia de direitos da população vulnerável e existe por ela.
7) O Art.6º trata como facultativo por parte das unidades jurisdicionais, varas e juizados a adoção ou não de audiências virtuais em regime de teletrabalho. Bem se sabe que essas unidades jurisdicionais já passam por um processo de virtualização de audiência, desde 2020, danoso para a defesa de direitos da pessoa humana. Basta colocar em análise a situação de tortura física que só pode ser evidenciada por meio de uma audiência presencial. Diante dessa realidade o trabalho da Defensoria Pública deveria ser o de, juntamente com a sociedade civil organizada, manifestar-se contrária às audiências virtuais e não em favor delas. Vale citar o exemplo da Defensoria Pública de São Paulo que aderiu à campanha “Tortura não se vê pela TV”, construída por vários coletivos e movimentos que pautam Direitos Humanos, e enviou manifestação com essa abordagem ao Supremo Tribunal Federal. Na mesma perspectiva, no Art.13º prevê-se que para a realização da audiência de custódia e apresentação de adolescentes em conflito com a lei em formato virtual haja uma entrevista também virtual do(a) defensor(a) com o(a) acusado(a)/apresentado(a). Se por si própria a audiência de custódia e a apresentação virtuais são absurdos, na medida em que facilitam práticas de tortura contra as pessoas detidas, o absurdo se torna ainda maior quando aquele/aquela que tem o papel de defender e garantir direitos se encontra em uma tela.
8) A resolução não dispõe de nenhum artigo que trate das visitas a pessoas internadas em cumprimento de medidas socioeducativas ou em privação de liberdade no sistema prisional. Avalia-se uma redução significativa do atendimento da DPE a essa população vulnerável no contexto pandêmico, o que impacta não somente em consultas processuais, mas na garantia dos Direitos Humanos, bem como no projeto de “reeducação” e de “ressocialização”. Em um regime de teletrabalho esse atendimento seria, então, reduzido a zero. É possível haver visitas eficazes de forma virtual, mesmo com o isolamento cada vez maior das unidades de internação e encarceramento? Consideramos não ser possível.
Por fim, entendendo ser a Defensoria Pública a Instituição do Sistema de Justiça que foi construída a várias mãos e sua história confunde-se com a árdua luta por direitos e conquista da cidadania no país, consideramos a perspectiva de um atendimento remoto, nos termos que trata a proposta de resolução ora discutida, uma grave ameaça institucional. Dissemos isso ancorado Segundo o Ministro Celso de Mello “A Defensoria Pública é o instrumento jurídico-institucional concebido pelo Estado brasileiro para permitir que as promessas constitucionais, notadamente em tema de direito civis, econômicos e sociais, não se tornem proclamações vãs, retóricas e inconsequentes”. Trata a sociedade civil a fim de acompanhar a Defensoria e defendê-la como instituição que abriga e acolhe as mais diversas violações dos direitos do povo. Para tal, tratamos de um atendimento acolhedor, humanizado e atento.
A experiência vivida nos anos de Pandemia da Covid-19 nos trouxeram um trauma incomensurável: telefones que não atendiam, documentos que não chegavam, formato de documento, tamanho etc. Questões que significaram barreiras graves nos atendimentos da Defensoria Pública. Manter esse serviço como única alternativa não é viável para o povo, não alcançaria a Defensoria a sua missão institucional o que nos faz perguntar o que seria da Defensoria? Surgiria no seu lugar um órgão protocolar em que você deposita histórias de vida, talvez no futuro esta poderia transformar-se em órgão meramente protocolar.
Ademais, a proposta é incoerente com o Orçamento Participativo para o qual nós, sociedade civil, fomos convocados(as). Nesse espaço expressamos as demandas por ampliação da DPE, não havendo nenhuma defesa sobre teletrabalho, e mesmo assim nos deparamos agora com uma tentativa de seu desmonte, totalmente desalinhada com nossas pautas. Seria o Orçamento Participativo, então, apenas um cumprimento de agenda? É importante destacar que jamais iremos referendar posições contrárias as nossas lutas.
Assinam esta carta:
- Frente pelo Desencarceramento do Ceará
- Pastoral Carcerária do Ceará
- Pastoral Carcerária Nacional
- Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas
- Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA Ceará
- Centro Popular de Cultura e Ecocidadania – CENAPOP/CE
- Tambores de Safo
- Rede de Mulheres Negras do Ceará
- Grupo de Valorização Negra do Cariri – GRUNEC
- Terreiro das Pretas
- Instituto Ipanujé
- Ilê Asé Omo Ayê
- Centro de Defesa da vida Herbert de Sousa de Sousa – CDVHS
- Faculdade Terra Nordeste (FATENE) – Representante das Instituições de Ensino Superior Privado no CEDH
- Coletivo Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo e Prisional do Ceará
- Instituto Terramar de Pesquisa e Assessoria à Pesca Artesanal
- Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/CE
- Rede Nacional de Advogados e Advogados Populares/RENAP-Ceará
- Movimento Saúde Mental
- Frente de Mulheres do Cariri
- Fórum Cearense de Mulheres/AMB
- Católicas pelo Direito de Decidir – CDD
- Rede de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável do Grande Bom Jardim
- Movimento Mães e Familiares do Curió
- Movimento Mães da Periferia de Vítimas por Violência Policial do Estado do Ceará
- Escola de Formação Política e Cidadania – ESPAF
- Frente de Luta por Moradia Digna
- Associação Ser Ponte
- Movimento pela Soberania na Mineração (MAM/Ceará)
- Mandata Coletiva Nossa Cara
- Comissão de Direitos Humanos da OAB/CE
- Nucleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais – NEGRER
- Núcleo de Estudos de Descolonização do Saber – NEDESA
- Fábrica de Imagens
- Associação Espírita de Umbanda São Miguel – AEUSM
- Instituto de Saúde Integrativa Ecossistêmica e Sustentabilidade – IntegraSer
- Centro Socorro Abreu
- Associação Santo Dias
- Instituto Terre des Hommes Brasil
- Centro de Apoio a Mães de Portadores de Eficiência – CAMPE
- Integrasol
- Visão Mundial
- Associação Beneficente dos Agostinianos Recoletos de Fortaleza – ABARF
- Pastoral do Menor Rne1
- Fundação Marcos de Bruin
- Instituto Negra do Ceará – INEGRA
- Movimento Cada Vida Importa
- Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará
- Bando Somos Todas Marias
- RUA – Juventude Anticapitalista
- União Comunitária de Desenvolvimento de Frexeiras
- Instituto Sinergia Social
- Instituto Parque Universitário
- Associação Francisco de Assis
- IDESQ
- Coalizão Nacional pela Socioeducação
- Caritas Brasileira Regional Ceará
- Articulação das Pastorais Sociais
- Comunidades Eclesiais de Base – CEBS e Organismos do Regional NE1
- Comissão de Promoção à Igualdade Racial OAB/CE
- Comissão de Promoção à Igualdade Racial OAB/CE
- Diaconia ActAliance
- Coletivo Fuxiqueires