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[ARTIGO] “Eu moro no Curió, onde teve a Chacina”

Uma versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Povo, dia 13 de junho de 2017, página 11.

Ângela Pinheiro¹

Sentáramos lado a lado, ela – de 13 anos, que atribuo o nome fictício de Letícia, estudante de escola pública municipal – e eu. O diálogo foi se fazendo, pouco a pouco.

“Onde é que nós estamos? Aqui é do Governo do Estado?” Perguntou-me, apontando para a logomarca, na publicação que recebêramos.

Não. É a Assembléia Legislativa. Você conhece alguém que está na mesa dos trabalhos?

“Não. A senhora sabe por que acabaram com o ABC lá do meu bairro?” “Era tão bom. Eu ia todo dia. Eu tenho é saudade de lá”.

Será bom que você pergunte e diga isso para alguém do Governo. Está vendo aquela senhora na mesa [dos trabalhos], vizinho ao senhor [Presidente da Assembléia] que está falando? É a Vice-Governadora. Ela poderá responder.

Assistíamos a mais uma iniciativa do Comitê Cearense de Prevenção a Homicídios de Adolescentes (CCPHA) – integrado pela Assembléia Legislativa, Governo do Estado e UNICEF. Resultados de pesquisa feita com familiares de adolescentes que foram mortos estavam sendo apresentados por seus coordenadores. Estarrecedores dados, que nos colocam em grotesco primeiro lugar como Estado e como cidade (Fortaleza), onde mais se mata adolescentes no Brasil.

Quando se abordava gravidez na adolescência, Letícia me disse: “é igual lá em casa. Minha mãe teve a minha irmã quando ela tinha 15 anos”.

Mais adiante, com uma expressão contraída e a seriedade que crianças e adolescentes costumam assumir, Letícia voltou a puxar conversa:

“Eu moro no Curió, onde teve a chacina. Uns amigos meus estavam no meio da rua, os policiais chegaram, mandaram eles se ajoelharem e atiraram na cabeça deles”.

Extremamente tocada com o relato espontâneo de Letícia, indaguei: E você viu isso acontecer?!

“Não! Eu estava na minha casa e ninguém podia sair, porque podia ser morto também. A maioria dos que foram mortos tinha 16 e 17 anos, e eram da nossa escola. Um menino morreu na frente da casa dele”.

Era seu amigo?

“Não, era conhecido, ele era muito popular. Ele estava com um amigo, aí o policial chegou, mandou ele se ajoelhar e matou ele [sic]. Era o Pê. Agora, a banda da nossa escola se chama Pedro Vitor Alcântara”.

Quedei-me calada, por alguns instantes, refletindo sobre a nossa conversa, que me fez relembrar tantos diálogos que temos tido no CCPHA, no correr do último ano e meio, em busca de compreender essa brutal realidade de assassinatos de adolescentes, e de formular recomendações que, de fato e de direito, signifiquem um real enfrentamento dessa vergonhosa situação, particularmente pelo Poder Público.

E estávamos ouvindo exatamente a Recomendação 2 (Ampliar a Rede de Programas e Projetos Sociais de Prevenção para Adolescentes Vulneráveis ao Homicídio), quando minha vizinha perguntou, sob um sorriso tímido:

“Vão criar um novo Projeto no meu bairro em lugar do ABC?!”

E, de imediato, acrescentou, agora com a fisionomia contraída: “Sabia que o CRAS lá do bairro não está fazendo nada, faz é tempo? É porque faz uns dois meses que não tem nem água nem luz lá. Aí, não dá pra funcionar”.

Antes que pudéssemos prosseguir o diálogo, Letícia e seus companheiros de escola foram chamados por uma das professoras. Era hora de voltar, o ônibus que os trouxera não podia sair depois de 11h.

Despedimo-nos rapidamente, dizendo-nos nossos nomes e como tinha sido bom nos conhecer.

Fiquei cabisbaixa por algum tempo, lágrimas nos olhos e coração pulsando aceleradamente. Como ficar inerte diante da dor e da lucidez estonteantes de Letícia, que expressara, em tão rápido contato, tanto do que a pesquisa nos revela, tanto de anseios e demandas dos adolescentes por Vida, por Dignidade?

Grata, Letícia. Nossa conversa está vívida em mim, me faz mais e mais responsável e sensível. Quero seguir e seguir e seguir.

¹Professora da UFC, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC). a3pinheiro@gmail.com

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