O Comitê Contra a Tortura (CAT), órgão ligado à ONU, listou uma série de preocupações com o sistema socioeducativo no Brasil e recomendações ao Estado brasileiro para prevenir a ocorrência de tortura em espaços de privação de liberdade.
Entre outros pontos, a ONU pede ao Brasil que “adeque totalmente” seu sistema socioeducativo para atender a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promovendo alternativas à detenção (privação de liberdade), que deve ser utilizada como “último recurso e pelo período mais curto possível”, com revisão regular das medidas. Tais diretrizes são apontadas pelo documento conhecido como “Regras de Pequim”, resolução da ONU que estabelece as Regras Mínimas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude.
O órgão da ONU aponta no documento estar
“profundamente preocupado com o fato de que medidas alternativas à detenção não são aplicadas de forma eficaz, resultando, entre outras coisas, em grande número de adolescentes, principalmente afro-brasileiros, cumprindo penas de prisão”.
Outra preocupação apontada pelo Comitê é a grande quantidade de adolescentes detidos por pequenos delitos, situações estas que não justificam a privação de liberdade. A ONU também mostra preocupação com a Proposta de Emenda Constitucional PEC 171/1993, que pretende reduzir a maioridade penal para 16 anos, e do Projeto de Lei 333/15, que quer aumentar de 3 para 10 anos o tempo máximo de cumprimento da medida socioeducativa.
Além disso, o documento emitido pelo CAT aponta as seguintes recomendações sobre o sistema socioeducativo:
(a) Investigar imediata e minuciosamente todos os casos de violência contra crianças e mortes de crianças sob custódia;
(b) Tomar medidas para resolver a superlotação dos centros socioeducativos de privação de liberdade;
(c) Tomar medidas para resolver a superlotação nos centros socioeducativos de privação de liberdade;
(d) Melhorar, com urgência, as condições de vida nos centros de privação de liberdade para adolescentes em termos de saneamento, higiene, segurança e educação, e garantir que os adolescentes sejam separados dos adultos, que sejam oferecidos programas socioeducativos e de reabilitação adequados e culturalmente diversificados, que os funcionários tenham recebido treinamento adequado e que sejam realizadas inspeções regulares;
(e) Acelerar os procedimentos legais e cumprir estritamente as normas relativas ao período máximo de privação de liberdade preventiva, e observar a proibição de impor confinamento solitário e medidas similares a adolescentes;
(f) Aumentar o número de instalações e procedimentos de varas especializadas;
(g) Aumentar o número de instalações e procedimentos de varas especializadas que tenham recursos humanos, técnicos e financeiros adequados;
(h) Aumentar o número de instalações e procedimentos de tribunais juvenis especializados que tenham recursos humanos, técnicos e financeiros adequados e treinamento adequado.
Denúncia na ONU feita em abril
Essas recomendações são fruto da incidência política da Coalizão pela Socioeducação, da Organização Mundial Contra Tortura (OMCT), do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP) e do CEDECA Ceará através do relatório entregue na 76ª sessão do Comitê contra a Tortura no Escritório das Organização das Nações Unidas, realizado em Genebra (Suíça) entre os dias 18 e 20 de abril.
O documento denunciou ao Comitê Contra a Tortura e outros Tratamentos, Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU que os centros socioeducativos brasileiros nada se diferem do sistema carcerário em termos de infraestrutura e funcionamento, estando longe de serem um espaço de ressocialização.
A resolução da ONU servirá como alicerce na defesa dos e das adolescentes e jovens inseridos/as no Sistema Socioeducativo e garantirá meios de luta para que não haja nenhum retrocesso ou violação dos direitos desses indivíduos.
Comunicação CEDECA – Qual a importância dessas recomendações para o enfrentamento à tortura no Brasil?
Marina Araújo (Coordenadora-Adjunta CEDECA Ceará)- Significa que o Comitê contra a Tortura (CAT) da ONU identificou e reconhece publicamente como umas das principais temáticas de violações a tortura e os maus-tratos contra adolescentes privados/as de liberdade no Brasil. Durante o período de 12 a 15 meses vamos ter o monitoramento do Brasil para o cumprimento dessas recomendações por parte do CAT. Como consequência desse processo de incidência, espera-se que o Poder Público (federal, estadual e municipal) e os demais órgãos responsáveis (do Poder Judiciário e do Poder Legislativo) adotem compromissos concretos, a exemplo das investigações nos casos de mortes de adolescentes sob custódia, ou seja, que estavam sob a tutela do Estado em unidades socioeducativas
É um momento histórico porque o Brasil há mais de 20 anos não passava por um processo de revisão do CAT, um organismo da ONU importantíssimo que monitora o cumprimento da Convenção contra a Tortura. Para os países da América Latina, que são marcados por longos períodos de escravidão e de ditaduras militares, isso tem ainda um significado maior.
Thaisi Bauer (Secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação) – Ter respostas da ONU reconhecendo que o Sistema Socioeducativo precisa ser totalmente readequado é importante porque ratifica o que os movimentos de mães, as organizações e entidades que monitoram e fiscalizam as unidades de internação já dizem há mais de duas décadas, sobretudo após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”. Por isso, a resolução da ONU servirá como alicerce na defesa dos e das adolescentes e jovens inseridos/as no Sistema Socioeducativo e garantirá meios de luta para que não haja nenhum retrocesso ou violação dos direitos desses indivíduos.
É a exposição do estado brasileiro no âmbito internacional e a demonstração de que o país não cumpre sequer com o que está disposto na própria legislação e que o fato de termos uma normativa considerada uma das mais avançadas do mundo de nada adianta, pois continuamos a léguas de reparar os direitos das pessoas que foram escravizadas e que continuam sendo violentadas dentro dos muros das unidades de privação de liberdade. O reconhecimento e a ratificação do que falamos pela ONU está longe de ser reparação histórica, mas é um importante instrumento para que possamos cobrar ainda mais que as políticas de Estado sejam concretizadas.
Maria Clara D’Àvila, advogada do GAJOP – É um momento histórico porque o Brasil há mais de 20 anos não passava por um processo de revisão do CAT, um organismo da ONU importantíssimo que monitora o cumprimento da Convenção contra a Tortura. Para os países da América Latina, que são marcados por longos períodos de escravidão e de ditaduras militares, isso tem ainda um significado maior.
A recomendação do Comitê Contra a Tortura da ONU indica os caminhos que o Brasil deve seguir para fazer cumprir o compromisso assumido para erradicação da tortura, e um dos principais assuntos que foram objeto de preocupação do Comitê nessa revisão foi com adolescentes em privação de liberdade no Brasil. O Comitê levou com seriedade os nossos relatórios e denúncias da sociedade civil e de familiares sobre a situação de violência, mortes e condições inadequadas de infraestrutura, saúde e educação das unidades de cumprimento de medidas socioeducativas. As recomendações passam por medidas de caráter de investigação e responsabilização de casos de tortura como medidas de caráter preventivo, como tornar a privação de liberdade medida de exceção e não como regra, que é o que determinam as normativas internacionais e nacionais de proteção a crianças e adolescentes. Esse reconhecimento vindo da ONU é muito importante para cobrar que as instituições responsáveis cumpram o seu papel e permite que a sociedade civil monitore durante os próximos meses a implementação das recomendações.