Para além da tutela psi-jurídica da adolescência: a luta antimanicomial e a medicalização da infância

 

A IV Conferência Nacional de Saúde Mental, a ser realizada entre os
dias 27 e 30 de junho de 2010, em Brasília, precedida pelas etapas
municipais e/ou regionais, tem como tema principal "Saúde Mental
direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar
desafios".

Considerando o caráter intersetorial da IV Conferência, principalmente
o foco do Eixo I: "Saúde Mental e Políticas de Estado: pactuar
caminhos intersetoriais", abre-se caminho para um debate profícuo, bem
como a pactuação de diretrizes e ações no que diz respeito à relação
da Justiça com as políticas de Saúde Mental.

É fundamental que a IV Conferência Nacional de Saúde Mental aponte
para aumento dos processos de patologização e de criminalização de
adolescentes que se valem da aliança psi-jurídica para fortalecer o
paradigma tutelar correcional em detrimento da implementação integral
da Política de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. No
tocante ao uso e abuso de drogas, é crescente a visibilidade da
temática no campo da infância e da adolescência com indicação de
tratamentos com contenção, em movimento contrário às diretrizes do
Ministério da Saúde que apontam para o modelo de Redução de Danos.
Operam, assim, em dissonância aos novos paradigmas de cuidado de saúde
mental e aos próprios princípios do ECA de convivência familiar e
comunitária.

No contexto do adolescente autor de ato infracional, a atenção em
saúde mental tem apresentado importantes entraves. No Estado de São
Paulo, chamamos atenção para o caso da Unidade Experimental de Saúde
em que temos um dito equipamento de saúde atualmente pertencente à
Secretaria Estadual de Saúde, destinado a custodiar, segundo o Decreto
que o regulamenta (Dec. nº 53427/2008), "adolescentes e jovens
adultos" com diagnóstico de distúrbio de personalidade e alta
periculosidade, que cometeram atos infracionais graves, egressos da
Fundação Casa e interditados pelas Varas de Família e Sucessões.

Os jovens são processados em ações judiciais com pedidos de interdição
civil cumulado com internação hospitalar compulsória, nos termos da
lei 10.216/2001. Nos casos dos jovens encarcerados na UES, trata-se de
espécie de custódia à margem da legalidade, que se presta a prorrogar
o limite improrrogável de três anos de internação de jovens em
conflito com a lei. Após o esgotamento da competência da Justiça da
Infância, ao invés de proceder-se à compulsória liberação em virtude
do alcance máximo do tempo de encarceramento, o jovem dito perigoso,
diagnosticado como sendo portador de transtorno de personalidade
anti-social, é enviado à Unidade. Ao contrário da medida de
internação, esse novo encarceramento não é precedido do cometimento de
um crime, cuja apuração tenha se submetido às garantias da lei. O
jovem é para lá enviado sem que tenha praticado ato algum, após ter
sido exaustivamente responsabilizado pelo ato infracional cometido
outrora. Ademais, essa espécie de custódia não comporta prazo de
duração. O jovem permanecerá enclausurado até segunda ordem judicial.
Até maio de 2010 sete jovens compuseram a população da Unidade
Experimental de Saúde. Apesar de tratar-se de um equipamento atrelado
à Secretaria Estadual de Saúde, a unidade não conta com inscrição do
CNES, Plano de trabalho terapêutico e os prontuários médicos jamais
foram apresentados aos jovens, seus familiares e defensores, sob o
argumento de sigilo profissional. Permanecendo há 3 anos sem projeto
de saúde e sem projeto sócio-educativo (de menor exigência legal).

Tal mecanismo denuncia renovadas formas de encarceramento desses
jovens, afirmando modelo que resiste às garantias asseguradas pelo
ECA. Os adolescentes em privação de liberdade estão sendo
estigmatizados com o diagnóstico do Transtorno de Personalidade
anti-social fundamentado na verificação da periculosidade nesses
indivíduos, defendendo ações ditas de tratamento visando garantir o
direito à saúde ao jovem cidadão brasileiro.

Considera-se que é fundamental neste importante movimento político de
defesa do cuidado em contraponto ao tratamento reflexões com a
finalidade de construir um posicionamento de referência nacional
contra a o encarceramento juvenil promovido pela prática da
psiquiatrização.

A psiquiatrização, tal como está colocada nesse cenário, atua contra a
possibilidade de responsabilização dos jovens. Pelo contrário, pode
favorecer a desresponsabilização do adolescente, uma vez que o
auto-reconhecimento do sujeito como um "portador de transtorno de
personalidade" "quase incurável" colocando-o como "incapaz e sem
discernimento" para elaborar seus atos, suspende a possibilidade do
sujeito de atuar em sua história.

É urgente rever o papel dos atores de saúde, problematizando sua
função de controle social, uma vez que o ideário e a estratégia das
políticas contemporâneas de saúde tem ajudado a repensar o uso do
diagnóstico de transtorno mental anti-social para adolescentes e a
contenção como baliza para o tratamento. É fundamental que o encontro
da psicologia e do direito não seja para produção de retrocessos como
a junta médica sugerida para referendar o chamado "discernimento", ou
"plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato", que
apresenta retrocessos diversos, dentre eles remeter a este
"discernimento" previsto no Código de Menores de 1979, e superado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente que não diz que os inimputáveis
não têm discernimento, mas tão-somente supera essa questão e avalia
ou, pelo menos, sugere que seja avaliado no momento da aplicação das
medidas socioeducativas o contexto social, o ato infracional,
possíveis causas e prováveis conseqüências e fundamentalmente as
"necessidades pedagógicas", preferindo-se aquelas que visem ao
fortalecimento dos vínculos amiliares e comunitários Art 100 do ECA
(1990).

É urgente a incorporação dessas questões na construção coletiva e
intersetorial de políticas públicas da Saúde Mental.

Defendemos que os dispositivos de cuidado da saúde mental da criança e
do adolescente devem ser efetivados sob a luz da Lei Federal mais
atual e que versa sobre a mesma matéria, ou seja, analisado a partir
d
a Lei 10.216/01 (Lei da Reforma Psiquiátrica). Nesta legislação está
elucidado que (Artigo 4º).: "a internação, em qualquer de suas
modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes", dispondo, inclusive, que o tratamento deverá
ter como finalidade permanente a reinserção social do paciente (no §
1º deste Artigo). Além disso, temos no § 3º do mesmo Artigo que: "é
vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em
instituições com características asilares, ou seja, aquelas
desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos
acientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º".

É fundamental que retomemos o disposto na 1ª. Conferência Nacional de
Saúde Mental, com relação à Iegislação sanitária e psiquiátrica da
criança e do adolescente, considerando: 5. A deformação conceitual
vigente que considera "menores sem lar", ‘meninos de rua’, como
futuros "delinqüentes ou psicopatas". Naquele momento foi proposto: 1.
Que se adotem normas legais que limitem a internação psiquiátrica de
"menores" e a mantenham sob controle; 2. Que aos "menores", a partir
dos 16 anos, seja facultado requerer contra sua internação; 3. Que se
garanta, aos "menores" hospitalizados, educação formal ou
especializada, habilitação profissional e o direito ao espaço lúdico;
5. Que as medidas terapêuticas para utilização em "menores" sejam
revistas criteriosamente, limitando ou proibindo a utilização de
psicofármacos e outros procedimentos (eletroconvulsoterapia, por
exemplo) de utilidade duvidosa ou de potencial pernicioso ao processo
de desenvolvimento e integridade física e mental dos "menores"; 6. Que
as internações psiquiátricas realizadas por decisão do "Juizado de
Menores" sejam necessariamente submetidas à avaliação de uma equipe de
saúde mental; 7. Que aos "menores" submetidos à internação sejam
garantidos os direitos de proteção semelhantes aos dos pacientes
adultos, estudando-se mecanismos de controle e proteção que evitem uma
discriminação acessória a partir de sua minoridade e condição de
tutelados; bem como o encaminhamento efetivo com ações de
monitoramento da política atual de saúde mental proposto na 2ª.
Conferência Nacional de Saúde Mental: Criar, no Ministério da Saúde,
uma Comissão de Proteção dos Direitos de Cidadania da Criança e do
Adolescente portadores de sofrimento mental, tendo como base o
Estatuto da Criança e do Adolescente; e que se acorde a orientação da
3ª. Conferência Nacional de Saúde Mental: "As crianças e os
adolescentes não poderão ser tratados em serviços que não garantam os
direitos reconhecidos pelo Estatuto dos Direitos da Criança e do
Adolescente."

Vamos avançar na Reforma Psiquiátrica Antimanicomial ao abarcar a
questão da tutela psi-jurídica de crianças e adolescentes em que
viceja com a concepção de assujeitamento, com propostas ditas de
cuidado à saúde mas que m suas práticas atuam a partir da lógica de
"tratamento" com ações de confinamento e punição! Precisamos, juntos,
enfrentar também este desafio que se coloca no horizonte de nossa luta
coletiva!

Juntos, rumo à IV Conferência Nacional de Saúde Mental! Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial para todos!

Fonte: Conselho Regional de Psicologia 6ª. Região (CRP SP)

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